- Clair Hickman
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Florencia Lorenzo
Pesquisadora, Tax Justice Network
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Marla Dukharan
Economista especializada em Caribe e consultora internacional.
Tributar super ricos e corporações de forma justa é fundamental para ter justiça fiscal. Mas, como garantir o máximo de sua eficácia quando ainda existem jurisdições que cobram zero ou quase nada de impostos e permitem sigilo de renda e patrimônio?
No episódio #72 do É da Sua Conta passamos a chamar estes locais que prejudicam o mundo todo pelo nome correto: esconderijos fiscais.
Você ouve sobre:
- A origem de termo Paraíso Fiscal e por que substituir por esconderijo fiscal.
- Esconderijos fiscais no Caribe: herança da colonização.
- Listas da OCDE e da União Europeia deixam de fora maiores ofensores globais, que são justamente países membros desses grupos.
- Como o Brasil classifica esconderijos fiscais e o que faz para combatê-los.
- Reparação para países caribenhos e Convenção Tributária da ONU para acabar com esconderijos fiscais.
“Na linguagem comum, nós falamos sempre paraíso fiscal, mas a legislação fala em tributação favorecida ou país que tem um regime fiscal privilegiado”
~Clair Hickman, Instituto de Justiça Fiscal“A grande maioria das pessoas estão profundamente afetadas de forma negativa por essas jurisdições. Então essa ideia de paraíso é muito deletéria”.
~ Florencia Lorenzo, Tax Justice Network“Fomos criados para que os ricos do Norte global pudessem fugir aos impostos. E depois nos chamam de paraíso fiscal e nos colocam na lista negra. Mas foi isto que nos obrigaram a fazer!”
~Marla Dukharan, economista especializada em Caribe
Dublagem: Railda Herrero
Músicas: Day at the beach (Igor Lisul), Severed Beach Head (Weldroid), Haven (Tea K Peak), Glass Beach (Bio Unit) e Steps on the Beach (Audroid MK)
Música Day at the beach – Igor Lisul
Florencia Lorenzo: Se você pensa em paraíso você pensa automaticamente numa ilha do Caribe, com palmeiras, mar lindo, mar azul
Música Severed Beach Head (Weldroid)
Florencia: E, na verdade, muitos paraísos fiscais são ilhas completamente cinzentas sem sol, como o Reino Unido ou as ilhas de Jersey, enfim, que estão ali perto do Reino Unido. Se a gente olhar também Holanda, enfim, tem vários países europeus que não estão muito próximos da imagem que a gente geralmente tem dessa ideia de paraísos fiscais. A adoção de outros termos como guaridaou esconderijo fiscal tem sido uma alternativa
Música É da Sua Conta
Grazielle David: Oi, boas vindas ao É da sua conta, o podcast mensal sobre como consertar a economia para que ela funcione para todas as pessoas e o planeta. Eu sou a Grazielle David.
Daniela Stefano: E eu a Dani Stefano. O É da sua conta é uma produção da Tax Justice Network, Rede Internacional de Justiça Fiscal.
Música É da Sua Conta
Grazi: A verdade sobre os paraísos fiscais, ou melhor, esconderijos fiscais, é o tema do episódio #72 do É da Sua Conta
Música
Grazi: Alguns esforços feitos por alguns países para que os super ricos e corporações sejam tributados de maneira justa acabam falhando. Falta vontade política. Isso porque outras jurisdições permitem muito sigilo fiscal, tributações baixas ou nulas. E assim, os lucros de multinacionais ou fortunas de estrangeiros são ocultadas nesses paraísos fiscais, ou melhor, esconderijos fiscais.
Florencia: Geralmente quando a gente está pensando em paraísos fiscais, a gente pode pensar em diferentes tipos, tem um processo de especialização muito grande. Não existe uma única característica que defina todos eles. É um universo de jurisdições nem todas são países completamente soberanas, o que permitem que aqueles que estão querendo evadir ou evitar a lei, consigam fazê-lo.
Dani: Essa é a Florencia Lorenzo, pesquisadora da Tax Justice Network e colunista do É da Sua Conta. Essa entrevista foi gravada no SESC Pompeia, em São Paulo. Se você está em outra cidade e nunca visitou, essa unidade do Serviço Social do Comércio, SESC, fica na zona oeste da cidade e funciona num prédio que antes era uma fábrica. Nós estávamos na biblioteca, que fica num galpão enorme e que abriga também um espaço de exposições e de brincadeiras para as crianças até seis anos. Se você tiver a oportunidade, vale a pena visitar! Dica cultural feita, bora voltar pras características dos esconderijos fiscais com a Florencia Lorenzo:
Florencia: Então, você vai ter alguns países que estão permitindo que indivíduos registrem empresas fantasmas ou que se beneficiem de sigilo bancário, por exemplo, enquanto outros são especializados em ter muitos acordos de tributação que permitem que eles canalizem os lucros de uma empresa e, assim, evitem pagar impostos.
Música Haven – Tea K Peak
Grazi: O que une esse tipo de país ou jurisidição é o fato de que facilitam serviços diversos para que super ricos e corporações transnacionais deixem de contribuir com impostos nos países onde deveriam ser tributados.
Dani: O termo em inglês para designar estes locais foi cunhado como TAX HAVEN. Haven como refúgio, no sentido de local fácil para escapar dos impostos ou das regras que uma pessoa ou corporação quer evitar. Mas para o francês, espanhol e português foi traduzido como Paraíso fiscal porque Haven soa como heaven, céu… Além de ser uma tradução equivocada, o termo cria uma narrativa muito positiva em torno desse fenômeno perverso…
Florencia: O impacto dele é positivo no máximo para os ultra-ricos e para um punhado de empresas que atuam multinacionalmente. A grande maioria das pessoas estão profundamente afetadas de forma negativa por essas jurisdições. Então essa ideia de paraíso é muito deletéria para a gente encarar o fenômeno de forma real.
Clair: Na linguagem comum, nós falamos sempre paraíso fiscal, mas a legislação fala em tributação favorecida ou país que tem um regime fiscal privilegiado
Grazi: Essa é a Clair Hickman, presidenta do Insituto de Justiça Fiscal. O Brasil define quais são as jurisdições com tributação favorecida, que oferecem baixa ou nenhuma tributação, no artigo 24 da lei 9.430 de 1996.
Clair: país de tributação favorecida é aquele país que tributa a sua renda a uma alíquota máxima de 17%. Inicialmente isso era 20%, depois mudaram para 17%. E outra questão, que é aquele país que não permite acesso a dados sobre a composição societária, titularidade ou identificação do beneficiário efetivo do rendimento atribuído ao não-residente.
Dani: A mesma lei brasileira também definiu outras características, além dessas duas, para país com regime fiscal privilegiado.
Clair: Aquele país que concede vantagens fiscais a não-residentes. E aquele país não exige a realização de atividade econômica substancial. Ou seja, se você pode abrir uma conta lá nesse país fiscal, você pode trazer rendimentos de outros países, de outros territórios, e aquele país não vai te tributar.
Grazi: Na prática, como funciona uma jurisdição com regime fiscal privilegiado?Clair: ele preenche aqueles requisitos de tributar renda a menos de 17%, mas ele estabelece algumas vantagens, tipo as empresas, holdings, companhia, elas podem se instalar no meu país e eu não vou cobrar imposto delas. Singapura, por exemplo, é um centro financeiro. Então, as seguradoras, as instituições financeiras podem se instalar no meu país que eu não vou tributar. As demais empresas vão pagar normal, como as empresas locais. Então, até o Uruguai tem algumas assim, algum setor econômico que ele quer atrair, e que para essas ele não cobra imposto.
Dani: Como a Receita Federal faz para saber qual país oferece tributação favorecida ou regime fiscal privilegiado?
Clair: Tem uma instrução normativa da Receita Federal. Então, nessa instituição normativa, ele traz a lista dos países que ele considera para esses casos, ou seja, tributação favorecida, tem uma lista de 68 países. E depois tem mais, acho que 10 ou 12, que ele chama de regime fiscal privilegiado. Ela estuda esses países, se eles se enquadram nesses requisitos estabelecidos pela legislação brasileira. Se eles se enquadram, ele põe na lista, ou tira da lista. Então, lá tem… Singapura, por exemplo, já mencionei, está como regime fiscal privilegiado. Ilhas Cayman está como tributação favorecida.
Grazi: Com exceção da Suiça, a lista brasileira é composta basicamente por ilhas do Caribe e do Pacífico, junto com alguns países do Oriente Médio. EUA e dependências dos Reino Unido não estão presentes. A lista completa de países que o Brasil considera esconderijo fiscal está na instrução normativa 1037 da Receita Federal e você encontra o link na descrição deste episódio em www.edasuaconta.com.
Música curta
Dani: A lista brasileira é parecida com a lista elaborada pela OCDE – o clube dos países ricos.A preocupação de que o sigilo bancário impede certos países, principalmente europeus e os Estados Unidos, de receberem os impostos devidos, surgiu a partir dos anos 1990. Florencia Lorenzo:
Florencia: A OCDE vai chamar esse fenômeno de competição prejudicial, ela aponta uma série de países menores. Alguns países do Caribe, alguns outros países na região africana, mas países membros da organização não foram mencionados mesmo que muitos deles estariam enquadrados em alguns dos critérios que a OCDE marcava como paraíso fiscal.
Grazi: Quem define as regras da tributação internacional é a OCDE. E a lista do clube dos países ricos não inclui os próprios membros, ainda que estes sejam os maiores ofensores globais, como é o caso dos Estados Unidos, que figura em primeiro lugar no Índice de Sigilo Financeiro, da Tax Justice Network.
Florencia: O caso mais famoso é a não inclusão da Suíça e de Luxemburgo nessas listas, enfim uma marca muito clara de hipocrisia.
Dani:– E qual é o problema de não incluir esses países nessas listas?
Florencia: Então, se você não inclui um país, ele não tem que revisar as regras, ele está meio isento ele tem uma carta branca para continuar fazendo as coisas que ele tinha feito. O problema é que se essa lista está esvaziada, você vai acabar fragilizando os mecanismos que o país tem para se proteger também. Dificulta de alguma forma, a proteção das bases tributárias daqueles países que adotam listas de paraíso fiscais como uma forma de proteger a base tributária deles.
Grazi: Essa lista da OCDE recebe muitas críticas dos países Caribenhos, que são os mais afetados pelo estigma de esconderijo fiscal. Quem explica é Marla Dukharan, economista caribenha e consultora internacional.
Marla Dukharan: Existem alguns países em que os colonizadores criaram esta estrutura fiscal de impostos baixos ou nulos. Quando algumas das suas colônias se tornaram independentes, utilizaram essa neutralidade fiscal, como é o caso das Bahamas, para poderem esconder a sua riqueza nestas ilhas em vez de levarem para Inglaterra ou França e pagarem impostos sobre ela. Portanto, isto foi criado pelos colonizadores para que eles pudessem fugir dos impostos no seu país de origem. Depois nos chamam de paraísos fiscais quando, na verdade, foram eles que nos criaram assim! E nos demonizaram e nos menosprazam quando, na verdade, foi tudo o que eles mesmos fizeram.
Grazi: O esconderijo fiscal pode ser visto como a continuação da colonização, uma forma de extrair riqueza de países em desenvolvimento para países mais ricos, explica a Florencia Lorenzo, pesquisadora da Tax Justice Network.
Florencia: Tem uma historiadora que se chama Vanessa Ogle, que ela justamente pegou para estudar a relação entre o surgimento dos paraísos fiscais e a disseminação nesse momento que eles ganham um impacto real na economia do mundo, e os processos de descolonização. Então a gente está falando dos anos 60, 70, o que se chama de terceira onda de descolonização, quando você tem o crescimento da ONU como um fenômeno, vários países passando pelo processo de descolonização, principalmente na África, e ela vai identificar o que ela chama de um pânico de dinheiro. Então, você tem os colonos que estavam atuando nas colônias que tinham os seus negócios lá e que durante o processo de descolonização eles tinham medo, por exemplo, de expropriação ou de que o recurso que eles vinham saqueando há muitos anos fossem retornado de uma forma ou outra para os países então descolonizados. E aí você tem justamente uma canalização desses recursos, o que dá um impulso enorme para o fenômeno dos paraísos fiscais, que muitas vezes termina de consolidar esse como o modelo econômico desses países durante esse processo.
Marla: Fomos criados para que os ricos do Norte global pudessem fugir aos impostos. E depois nos chamam de paraíso fiscal e nos colocam na lista negra. Mas foi isto que nos obrigaram a fazer! Foi assim que criaram a nossa estrutura fiscal!
Florencia: Se a gente olhar para grande parte do ecossistema de paraísos fiscais, muitos deles são ex-colônias ou dependências da Coroa Britânica. E que eles terem assumido esse papel de paraísos fiscais foi a resposta ao desenvolvimento econômico que o Reino Unido deu para eles. É uma resposta completamente inaceitável.
Dani: Como nos tempos da colonização em que os europeus exploravam as riquezas de países na África, América Latina e Ásia, as corporações multinacionais continuam extraindo riquezas dos países no Sul Global e escondendo os lucros.
Florencia: A multinacional enquanto um formato, um modelo econômico de fazer negócios, cresce muito no final do século 20 mas de alguma forma alguns autores vão falar que replica modelos que existiam já nos contextos imperiais. O surgimento dessas empresas que atuam em vários países por exemplo está muito atrelado com o modelo inglês de fazer negócio já no século 19 enfim algumas pessoas vão traçar continuidades históricas entre esses dois processos e que a gente sabe que algumas multinacionais têm uma relação simbiótica com os fenômenos dos paraísos fiscais. Elas crescem juntas e o modelo de negócio está profundamente moldado pela existência dessas jurisdições.
Grazi: E ainda que jurisdições caribenhas sejam apontadas em conjunto pela OCDE e União Europeia como aquelas que prejudicam a cooperação tributária internacional, há muita diversidade na maneira como cada um dos países caribenhos operam.
Marla: Existem países como Barbados que são considerados paraísos fiscais simplesmente porque os seus impostos sobre as empresas, acredito sejam cerca de 9%. Mas o imposto de renda pessoa física chega a 30%. Não sei bem por que razão os Barbados são considerados um paraíso fiscal nesse aspecto. Quando olhamos para os dados da OCDE, Barbados é a jurisdição fiscal mais elevada de todas no Caribe e América Latina, com exceção do Brasil, segundo os dados da OCDE. E Barbados tem mais empresas estatais deficitárias per capita do que Cuba, o que significa que o Estado é muito grande e é financiado através dos impostos. Por isso, não entendo muito bem como é que Barbados pode ser considerado paraíso fiscal. Vivi lá por cinco anos e digo que não é de todo um paraíso fiscal. Nunca paguei tantos impostos na minha vida como em Barbados.
Dani: Na lista da Comissão Europeia também não consta nenhum país europeu ou membro da OCDE. Na lista mais recente, de fevereiro de 2025, constam 11 países, – como Trinidad e Tobago e Panama no Caribe e Vanuatu no Pacífico; e a Russia, última adição.
Marla: Você já ouviu o Norte Global chamar os Estados Unidos da América de paraíso fiscal? No Índice de Sigilo Financeiro da Tax Justice Network, o país que ocupa o primeiro lugar são os Estados Unidos da América. E isso eles não falam.
Grazi: Ex-colonias e pequenos países rotulados como esconderijos fiscais. Mas potências como os Estados Unidos, ficam de fora das listas da OCDE ou União Europeia. Diante desse contexto tão injusto, quais políticas de reparação você acredita que deveriam ser adotadas?
Marla: Os países que foram criados como jurisdições de baixo ou zero imposto com base na sua história colonial, como as Bahamas, por exemplo: os países que criaram esta estrutura fiscal deveriam reconhecer, admitir e assumir a responsabilidade pela quantidade de evasão fiscal que foi conduzida nessa jurisdição pelo seu próprio povo, que foi colonizador, historicamente. E quando nos tornamos independentes, os seus próprios cidadãos, ou seja, os britânicos, os franceses, os holandeses, transferiram os seus ativos para esses paraísos fiscais que criaram para se esconderem dos impostos na Europa. É preciso que reconheçam isso e que responsabilizem os seus próprios cidadãos pela utilização das estruturas fiscais que criaram quando da independência.
Dani: Para a Florencia Lorenzo, é preciso que os países do Norte Global apoiem antigas colônias a construir um outro tipo de economia:
Florencia: Não adianta combater isso só pelo lado da crítica ou da proibição. Enfim você precisa também dar uma alternativa econômica para esses países que muitas vezes estão nesse lugar como fruto da experiência colonial deles. Se essa relação colonial levou eles para esse caminho, a revisão desse processo tem que também estar junto a uma crítica desse processo colonial que, enfim, colocou eles num caminho que hoje em dia, para muitos dos países, não é fácil sair e que, no entanto precisa , porque o impacto que isso tem para todo mundo é um jogo de soma negativa, você entra num processo de competição e um vai baixando outro vai baixando e na verdade no final das contas está todo mundo pior do que estava antes.
Grazi: Jurisdições com amplos os serviços financeiros e oferecem tributação baixa ou nula, bem como aquelas que oferecem sigilos acabam prejudicando a própria população.
Florencia: Por exemplo, os preços imobiliários são muito afetados por essas dinâmicas. A população local mal, mal se beneficia. O que a gente vê, por exemplo, no caso dos países caribenhos é que você tem uma elite que muitas vezes vem de países europeus vai atuar nesses lugares, mas, enfim, sua vida inteira está consolidada em outros lugares também. Tem uma relação quase parasítica com essas jurisdições.
Dani: A Comunidade Caribenha – CARICOM elaborou um Plano com 10 pontos para justiça reparatória que governos europeus devem cumprir para que as nações caribenhas possam realmente escapar do legado colonial e desenvolver modelos econômicos sustentáveis e justos.
Grazi: Os 10 pontos são:
- 1. Desculpas formais completas
- 2. Repatriação
- 3. Programa de desenvolvimento dos povos indígenas
- 4. Instituições culturais
- 5. Alívio da crise de saúde pública
- 6. Erradicação do analfabetismo
- 7. Programa de conhecimento africano
- 8. Reabilitação psicológica
- 9. Transferência de tecnologias
- 10. Cancelamento de dívidas
Dani: O link para o documento com a explicação completa de cada ponto está na descrição deste episódio, em www.edasuaconta.com
Música Glass Beach – Bio Unit
Grazi: Anualmente quase meio trilhão de dólares é perdido para esconderijos fiscais, de acordo com o Estado da Justiça Fiscal de 2024 da Tax Justice Network. Apenas 20% desse valor seria suficiente para, por exemplo, colocar na escola todas as crianças do mundo que hoje estão fora.
Dani: Além disso, as jurisdições com um setor financeiro muito maior que os demais setores econômicos e que usualmente têm nula ou baixa tributação de renda e muito sigilo fiscal, estão prejudicando sua própria população, em um triste legado colonial. Esse cenário causa desigualdade extrema nesses países, com altos níveis de pobreza, mortalidade infantil e assassinatos.
Grazi: Esses dados mostram os impactos negativos que têm os esconderijos fiscais para os demais países, para vida das pessoas e para o planeta. E isso precisa ser combatido. Clair Hickman, presidenta do Instituto de Justiça Fiscal:
Clair: Quando a gente negocia ou faz comércio internacional, tem que saber se aquele país tem vantagens sobre nós. Então, o Brasil cria algumas restrições tributárias para esses paraísos fiscais. Tem várias leis que estabelecem restrições e limitações para paraísos fiscais.
Dani: Curiosa é a Lei 11.312 de 2006 que criou a isenção de Imposto de Renda para os rendimentos de aplicações em fundos de investimento no Brasil para Investidor estrangeiro.
Clair: O rendimento desse estrangeiro, ele é isento de imposto de renda. Mas aí a lei diz assim, mas se ele for residente em paraíso fiscal, ele não tem essa isenção. Então, é uma restrição para Investidor estrangeiro residente em paraíso fiscal.
Grazi: Como isso ocorre na prática?
Clair: Muitos brasileiros levam dinheiro para fora do país, evasão, elisão fiscal, ou não, ou outras formas de motivos para levar para fora. Deixam o dinheiro em um paraíso fiscal e constituem uma empresa lá e trazem de volta para investir no mercado financeiro de capitais aqui, vem como investidor estrangeiro, para gozar do benefício da isenção dos lucros de dividendos. Em paraíso fiscal ele não tem esse direito.
Dani: Estrangeiro que investe no Brasil ficam isentos de tributação. De que forma estes brasileiros ricos conseguem burlar a lei?
Clair: Um caso muito conhecido aqui de uma autoridade recente, alguns anos atrás, descobriu-se que ele tinha muito dinheiro em Ilhas Cayman, que é considerado um paraíso fiscal na nossa legislação. E ele levou esse dinheiro do paraíso fiscal de Ilhas Cayman para Delaware que fica dentro dos Estados Unidos. Ele levou para lá, construiu uma empresa e trouxe dinheiro para o Brasil para investir aqui no mercado financeiro para gozar da isenção do imposto de renda. Mas não tinha muito o que fazer, porque Delaware não está na lista de paraísos fiscais
Grazi: Esse é o caso do ex-ministro brasileiro da economia Paulo Guedes envolvido no Pandora Papers, que foi revelado em 2021 e é tema do episódio #30 do É da Sua Conta.
Música
Dani: Parece que a reforma tributária que vem acontecendo no Brasil desde 2023 começa a se preocupar mais em tributar fortunas no exterior.
Clair: A lei 14.754 de 2023, no artigo 5º, parágrafo 5º, diz que os lucros apurados pelas entidades controladas no exterior por pessoas físicas residentes no Brasil, passou a tributar também se esse dinheiro estiver em paraíso fiscal.
Grazi: Antes da lei esse investimento só era tributado quando resgatado.
Clair: Como ele não resgatava nunca, não pagava nunca imposto. Mas aí a lei vem e diz assim, olha, mas se tiver em paraíso fiscal, aí você tem que tributar. Então, é uma forma de restringir também os recursos de brasileiros que estão em paraíso fiscal, por já pagar imposto.
Dani: Mas, Clair, como a Receita Federal fica sabendo que esse dinheiro dos indivíduos super ricos está no esconderijo fiscal se uma de suas características é justamente o sigilo?
Clair: Às vezes, se descobre através de triangulações e, hoje em dia, os países trocam informações sobre dados bancários. O Brasil recebe dos Estados Unidos, então, se tiver dinheiro fora, em algum banco, aí a gente consegue pegar, mas não pega tudo, essa triangulação via Delaware, por exemplo, é mais difícil de pegar.
Grazi: E no caso de empresas?
Clair: Quando uma empresa brasileira com sede no Brasil tem filiais subsidiárias em outros países, e lá ela obtém lucro. Esse lucro devia ser trazido de volta para o Brasil e juntar com o lucro da matriz aqui e tributar tudo no imposto de renda na declaração da pessoa jurídica, da empresa. E existe uma legislação que determina que, se estiver em paraíso fiscal, tem que trazer de volta naquele mesmo ano o lucro e tributar, mesmo que não traga, tem que tributar aqui, mas só se estiver em paraíso fiscal.
Dani: Outra lei que tinha o objetivo de reduzir o poder dos esconderijos fiscais foi aprovada no final de 2024 no Brasil. É a lei 15.079, que foi criada a partir do acordo internacional de tributação mínima de 15% das multinacionais, originado do projeto BEPS da OCDE.
Clair: Criou uma contribuição social de 15% sobre esses lucros operados e mantidos fora, mas ele só se aplica a grandes empresas e que tem um faturamento acima de 750 milhões de euros. Então, é mais para ter uma tributação mínima disso. O problema, por exemplo, das grandes empresas do agro, as que fazem as exportações não são brasileiras, são intermediárias, maioria delas são americanas, a grande parte, por exemplo, Bunge, a Cargill tem até uma chinesa, a Kofco. São meia dúzia de grandes transnacionais que fazem a exportação de mais de 90% do nosso agronegócio e que usam paraísos fiscais como intermediação, né? então, quais exportações são subfaturadas, mas a subsidiária deles, que fica em paraíso fiscal, ela refatura um preço alto lá fora, e a mercadoria vai direto lá para o cliente final, por exemplo, os grãos, agronegócio, quase tudo é para países asiáticos e Oriente Médio. E aí o Brasil perde dinheiro e a legislação, tanto de preço de transferência, não pega tudo isso aí. Porque tem várias formas de eles enganar, de manipular essas regras de preço de transferência. E o Brasil perde também em evasão de divisas, do produto interno bruto, que não é computado aqui. Exporta. Sai daqui por 100, mas a mercadoria vale 180, esses 80 ficam no paraíso fiscal, isso significa menos produto interno bruto, além do menos imposto de renda e contribuição social sobre esses 80.
Dani: Os acordo feitos na OCDE e inclusive já adotados no Brasil não estão dando certo
Clair: As regras são importadas da OCDE, novas regras de preço de transferência, tem algumas vantagens, mas elas são muito complexas e muito subjetivas, vai dar muito litígio e não vai resolver essa questão da intermediação e triangulação das exportações de commodities, não vão dar conta. Mesmo que a gente consiga pegar um pouco na questão da tributação, cobrar de volta alguma coisa, continua com o problema que quase ninguém fala, que é a evasão de divisas.
Grazi: Evasão de divisas é a perda no produto interno bruto, o PIB; isso significa uma perda para a economia do Brasil, porque as empresas que realizam a exportação são estrangeiras, o lucro delas é levado para outro local, e seus impostos também seriam.
Música
Dani: A Tax Justice Network define esconderijos fiscais a partir de evidências e compilação de dados de diversas fontes em dois índices: o índice de sigilo financeiro e o índice de esconderijos fiscais corporativos.
Florencia: Na nossa organização a gente sempre fala dessa natureza dual dos paraísos fiscais. No caso, ela está refletida nos nossos dois índices, Então a gente tem, por um lado, o índice de sigilo financeiro, onde a gente olha justamente para essa dimensão de como algumas jurisdições fornecem sigilo e opacidade para que indivíduos que querem evitar pagar impostos possam se ocultar e efetuar outras atividades fora da visão do Estado. E, por outro lado, a gente trabalha também com essa noção de paraísos fiscais corporativos. São jurisdições que, às vezes, ajudam corporações e indivíduos a fazerem coisas que talvez não são estritamente ilegais, mas que permitem que eles erodam a base tributária, evitem pagar imposto, enfim, canalizem os lucros para outras jurisdições.
Grazi: Para a construção do Índice de Sigilo Financeiro, por exemplo, o time de pesquisadoras e pesquisadores da Tax Justice Network avalia cada país pela forma como pratica o sigilo bancário, a facilidade de registrar uma empresa sem registrar a pessoa que é dona dessa empresa, de que forma o país participa de iniciativas de cooperação internacional, e vários outros indicadores. Diferente das listas da União Europeia e da OCDE, neste ranking da Tax Justice Network, os maiores facilitadores de abusos fiscais costumam ser países que fazem parte da OCDE ou União Europeia.
Florencia: É uma geografia que acaba enquadrando alguns dos países que, enfim, a gente sabe que eles ocupam esse papel, mas que eles não estão em quase nenhuma lista. No topo está lá os Estados Unidos, a Suíça, Singapura enfim, países que todo mundo sabe que participam dessas dinâmicas mas que acabam não recebendo o mesmo nível de escrutínio que alguns outros países, por exemplo, do Caribe, recebem.
Dani: De que forma que esse índice pode contribuir para diminuir o sigilo financeiro?
Florencia: Para os países que estão a fim de reformar suas regras, a gente sempre fala que a parte de análise legal é quase uma proposta. Se você está comprometido com a transparência, vê onde está errado lá e tenta melhorar. Então, você vê que as suas regras em comparação com outros países permitem que as empresas tenham muito sigilo, lá você tem também outros países que são exemplos de boas práticas. Para os países que estão querendo proteger as próprias bases, alguns dos indicadores de sigilo podem ser incorporados na análise que as autoridades tributárias realizam. Se você está vendo que grande parte das suas transações comerciais estão saindo para determinado país e é um país que está com alguma marca muito forte de sigilo financeiro, isso talvez poderia ser uma indicação de que essas transações têm que ser mais investigadas ou com mais detalhamento. Para os países que não estão tão preocupados no seu papel de facilitador, mas são mais preocupados em proteger a sua base, os indicadores também podem ser usados para analisar quais transações têm um risco maior.
Grazi: Se você é ouvinte do É da Sua Conta já conhece o Índice de Sigilo financeiro de episódios anteriores. Se você quiser ouvir mais sobre ele, os episódios #37 e #10 são recomendados. No episódio #58, a Florencia explica como os índices elaborados pela Tax Justice Network contribuem na luta internacional por justiça fiscal. Todos estes episódios estão disponíveis em www.edasuaconta.com
Música Steps on the Beach – Audroidd MK
Dani: Com listas artificiais, que apontam o dedo pra direção errada e deixam de fora os grandes ofensores globais, as ações da OCDE surtiram pouco efeito na diminuição dos abusos fiscais internacionais. Um marco mais justo para di scutir estes temas é a Convenção Tributária da ONU.
Florencia: Alguns dos impactos positivos que essa discussão pode ter para o debate sobre paraisos fiscais tem a ver com marcar essa discussão num contexto mais justo, que isso já seria um avanço importante. A gente não pode continuar entrando nessa questão de listas feitas por países ricos para enquadrar países pobres que não reflete nada do que está acontecendo de fato.
Música de conclusão do episódio
Grazi: Para que chamamos de paraíso um sistema que rouba bilhões em recursos públicos todos os anos? Quem decidiu que esconder dinheiro fazendo uso de brechas legais e estruturas opacas é aceitável? Enquanto lutamos por escolas, hospitais e serviços públicos com adequado financiamento e qualidade, super-ricos e grandes corporações seguem blindados por mecanismos feitos sob medida. É preciso apoiar as pessoas que vivem em países estigmatizados como esconderijos fiscais e que são excluídas do processo de tomada de decisão. Uma forma fundamental é apoiando os 10 pontos do plano de justiça reparatória do CARICOM. No Brasil, onde a Reforma Tributária está sendo discutida, é preciso aliar as propostas de impostos ao combate destes canais de ocultamento de rendas e patrimônios. Países da OCDE e União Europeia que criaram esses esconderijos fiscais agora fingem combatê-los, deixando os verdadeiros facilitadores do abuso fiscal de fora das listas. Até quando vamos permitir um sistema que legaliza a injustiça?
Música de encerramento do É da Sua Conta
Grazi: O É da Sua Conta é coordenado por Naomi Fowler.A dublagem é de Railda Herrero. A produção é de Daniela Stefano e minha, Grazielle David. Um abraço e até o próximo.
Dani: Lembrando que em www.edasuaconta.com, você encontra a descrição completa, pode ouvir os episódios anteriores, assinar o nosso boletim e ficar sabendo em primeira mão quando um episódio é lançado. www.edasuaconta.com. Se preferir, envie um email para [email protected], com seu nome e número de celular que a gente te cadastra em nossa lista de distribuição pelo whatsapp. Um abraço a você que nos ouviu até a última palavra e até o próximo!